quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

A alegoria do frango assado (2/6)...

(capítulo 1)

Capítulo 2



Fulaninho da Silva veio ao mundo senhor de alguns cabelos na careca e um vozeirão capaz de irritar mesmo as mães mais babosas. Nada mais lhe pertencia. Nada mais seus pais lhe puderam dar.

Seus pais trabalhavam a terra que não era deles. O pai lá ficava nos campos, de sol a sol. A mãe só lá trabalhava durante as manhãs. De tarde voltava para casa e fazia os restantes trabalhos domésticos. Fazia questão de ter a casa sempre limpa. Além disso guardava sempre 'um pouco do melhor' para quando lá fossem visitas: alguns frutos secos, algum vinho. Só não tinha era frango assado. Não que ela não quisesse. Não que não estivesse disposta a suportar o seu custo só para agradar aos convidados. Mas o frango estragava-se...

Fulaninho cresceu. Quando fez seis anos os seus pais decidiram mandá-lo para a escola. Faziam questão que o seu filho não tivesse a mesma vida que eles, custasse o que custasse. Fulaninho era uma criança irrequieta e curiosa, cheia de vida. Queria saber tudo. Perguntava tudo aos pais. E os pais, mesmo que não soubessem responder, lá lhe contavam a sua versão das coisas, só para não darem parte de fracos. Fulaninho tinha muita confiança e muito orgulho nos seus pais.

Certo dia, já tinha Fulaninho dez anos de idade, chegou à aldeia onde morava um senhor a cavalo, muito bem vestido. Parou na adro do pelourinho e tocou uma corneta muito barulhenta. Quando se certificou que tinha captado a atenção dos habitantes, sacou de um papel que trazia enrolado, e à medida que o desenrolava ia dizendo em voz alta: que o rei tinha morrido, que o novo rei era tal e tal...

Fulaninho perguntou aos seus pais se isso era bom. Os pais não sabiam... Disseram-lhe que era assim... que para eles pouca diferença fazia... que as coisas só podiam melhorar...

Poucos meses depois o senhor do cavalo e das vestimentas voltou para anunciar as medidas que o novo rei tinha tomado. Explicou como se havia de eleger um representante para comunicar anualmente ao rei o número de frangos assados consumidos naquela aldeia. É claro que Fulaninho ficou intrigado.

'-Ó pai, para que é que o rei quer saber quantos frangos assados comemos?'

Lentamente Fulaninho começou a perceber que os pais afinal não sabiam tudo. E também não era na escola que saciava a sua curiosidade. Mas Fulaninho não desistia... queria saber, tinha de saber. E lentamente começou a construir o seu próprio rumo, por onde acabaria por ir sozinho.

Quatro anos passaram. Por essa altura, no início de cada ano, o mesmo senhor do cavalo já era aguardado com expectativa por todos. Vinha comunicar a variação no IB e as novas medidas adoptadas pelo rei. Na escola os colegas mais novos de Fulaninho já aprendiam o que era o IB. Na aldeia já todos compreendiam o que era o IB e sabiam como era importante que o IB aumentasse. Assim, se o mensageiro anunciava uma descida no IB, todos ficavam deprimidos, ansiosos, expectantes, todos tratavam de poupar e gerir melhor os seus haveres. Se fosse anunciada uma subida, todos reforçavam as suas impressões de uma melhoria nas suas vidas e logo os homens iam comemorar para a tasca.

Na família de Fulaninho comia-se frango assado nas ocasiões especiais: no Natal e nos aniversários do pai. Eventualmente, se a dignidade de algum convidado justificasse, lá se comeria um frango assado extra. Fulaninho dava-se por satisfeito. Sabia que nem todos os seus colegas de escola tinham a mesma sorte. Alguns nunca comiam frango assado. No entanto, sabia também, porque volta e meia se falava disso, que o filho do pároco comia para aí uns cinco ou seis frangos por ano! E não era o único: também havia o filho do senhor doutor e os filhos do Valis Longus, o senhorio dos pais e de todos os vizinhos.

Fulaninho cresceu, trilhando solitário o seu próprio rumo. Foi descobrindo que algumas das coisas que se falavam na escola não eram verdadeiras. Mas foi percebendo também que as desigualdades eram muito mais relevantes e consequentes do que havia julgado. Nem todos na aldeia comiam o mesmo número de frangos. E quando as coisas melhoravam, não melhoravam de igual forma para todos. E por muito que os pais trabalhassem, com as costas cada vez mais vergadas e as rugas cada vez mais sulcadas, lá em casa nunca se comiam mais de quatro ou cinco frangos por ano.

(capítulo 3)

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