sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

O homem que plantava árvores...


Uma pequena animação que tive oportunidade de ver há uns meses atrás. Para lá da interpretação ecológica que pode ter, eu entendo-a como uma apologia à perseverança, à recompensa adiada, à dádiva, à luta, à poesia... ao seguir-se aquilo em que se acredita, independentemente das circunstâncias, movido pela esperança, senão apenas pelo sentido do dever cumprido, pelo ter de ser, pela procura da paz interior que nos assoma quando deixamos sair de dentro o que queríamos que fosse.

Todo o altruísmo é egoísta, pois sim, mas nem todo o egoísmo é altruísta. Terá o Adolfo, aquele do bigode, sido um homem que plantava árvores?... Levando a sua perseverança avante com chuveiros de gás?... Apesar do mundo... ou até contra o mundo?...

É assim que a utopia não é boa apenas por ser utopia, independentemente de saber se lá chegaremos ou não. É assim que a perspectiva ecológica ganha a sua importância, juntando a força para fazer à beleza do que se quer fazer. Cada um destes não é nada sem o outro.

E a metáfora de plantar árvores, já a conhecemos. Semeiam-se e plantam-se coisas vivas, que crescem e proliferam por seu próprio pé, por direito próprio. Plantam-se árvores porque elas demoram a crescer, bem mais do que nós demoramos a morrer, e porque nos são belas... De algum modo não imaginamos um homem que plantava árvores a trabalhar em plantações de eucaliptos... nem de acácias...

De algum modo, mesmo que nunca tenhamos ido a uma verdadeira floresta, as histórias de encantar já nos terão levado a extensos soutos, já nos terão levado a trepar pelos ramos de algum imenso carvalho centenário, já nos terão deitado à sombra de uma majestosa faia... São essas as árvores que vemos o homem a plantar. As que nos são mais belas.

De resto, como já alguém disse, as revoluções são cozinhadas pelos idealistas e sonhadores, servidas pelos lutadores e convictos, e comidas pelos homens práticos. E há já algum tempo que a boa psicologia positiva que nos tenta acossar advoga:

Sê prático, inteligente:
se alguém o fará por ti,
deixa o trabalho duro
e colhe o fruto maduro
da vida, simplesmente.

O mundo é uma maçã.
Alguém plantará hoje
as macieiras donde
comeremos amanhã.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

O detector de tretas...

Uma das coisas que mais me aflige em relação ao futuro da humanidade é verificar que as minhas previsões em relação à evolução da sua clarividência parecem confirmar-se, ano após ano. As previsões não são apenas minhas, de resto. De facto, à medida que os anos passam e que a escolaridade média da população com quem mais contacto (directa ou indirectamente) aumenta, à medida que o acesso à informação se torna cada vez mais simples e rápido, a clarividência da população não aumenta.

Esta não é uma afirmação científica, uma vez que não se baseia em nenhum estudo. É apenas a minha percepção. No entanto, poderia escrever um livro inteiro com exemplos do modo como as pessoas não desenvolveram como deveriam o seu detector de tretas, como lhe chamava Hemingway. E tivesse eu os recursos, estou certo que os estudos resultantes confirmariam esta percepção.

Detectar tretas não é algo que se possa fazer sem treino. Nenhum de nós nasce com um detector de tretas. Até o próprio conceito de treta tem de ser aprendido. E como não gosto de guerras de palavras, entendo aqui por treta, num sentido lato, todas as atitudes, acções e omissões, incluindo palavras, que um qualquer sujeito emprega para consciente ou inconscientemente nos enganar, isto é, para nos fazer acreditar em algo que não pode ser considerado verdadeiro.

É preciso muito treino para perceber as tretas do Passos Coelho. É preciso muito treino para perceber as tretas que nos chegam pelos noticiários na rádio, no jornal ou na televisão, todos os dias, e que nos são apresentadas como a mais suma verdade, verdadinha!

É preciso muito treino para perceber que forrar as estradas com lombas que ao serem pressionadas pelos automóveis que passam produzem energia que abastece os lampiões é uma treta. Não é que isso não se possa fazer! Pode, claro que sim. Mas é uma treta acreditar que isso é uma boa ideia ou uma boa coisa para se fazer.

É preciso muito treino para se perceber que a caridade é uma treta. Muito treino mesmo!... E é preciso ainda mais treino para perceber que o discurso da meritocracia ou do aumento da produtividade também são tretas.

A lista de tretas que devíamos ser capazes de detectar é infinita... assim um infinito da mesma ordem de grandeza que a infinita estupidez humana que o Einstein referia. Precisamente porque todos os dias há imensos seres humanos a inventar imensas novas tretas. Às vezes com malícia, às vezes sem malícia nenhuma... por simples ignorância.

Ao longo dos anos envolvi-me em muitas conversas em que alguém, já lá mais para o final, acabava por depositar as esperanças de um mundo melhor (fosse lá o que isso fosse) na educação das pessoas. Estas conversas, já se sabe, pressupõem sempre que os oradores são os detentores da verdade... Mas pronto... temos de ser benevolentes, se queremos uma boa e longa conversa à volta da fogueira, caso contrário a conversa termina logo num batente de cepticismo. Mas estas conversas assumem igualmente outros pressupostos, como por exemplo o pressuposto de que as pessoas não sabem o que precisam de aprender, se quisermos nem sequer sabem o que andam a fazer na vida, e que outros devem chegar-se à frente para lhes indicar o caminho.

Mas o mais engraçado desta ideia é precisamente que ela não passa de mais uma treta. Acreditar que um mundo melhor é uma consequência necessária do aumento da duração da educação formal das pessoas é uma treta. E acreditar que as pessoas podem aperfeiçoar o seu detector de tretas com mais anos de educação formal é também uma treta. O facto de gente muito instruída apregoar aquela primeira treta é só por si demonstrativo desta segunda treta.

A resposta sobre o que acontece quando a nível de educação da população aumenta depende, como é evidente, daquilo que entendemos por educação, daquilo que as pessoas estão efectivamente a fazer enquanto se “educam”, das condições que encontram no mundo para pôr em prática as suas ideias, etc, etc, etc.

E um problema que a educação formal que eu conheço tem é precisamente que em vez de ajudar as pessoas a desenvolverem o seu detector de tretas, desenvolve nas pessoas mecanismos de aceitação dócil de tretas! Vou mais longe, aliás, para dizer que aquilo que eu conheço do ensino formal em Portugal me leva a concluir que o ensino trata, ele mesmo, de enfiar uma data de tretas na cabeça das nossas "proto-pessoas"! Poderia listar um conjunto fastidioso dessas tretas...

É uma treta acreditar nos argumentos de autoridade que são inerentes ao ensino: a palavra do professor vale mais que a palavra do auxiliar de educação que por sua vez vale mais que a palavra do aluno; o que está escrito vale mais do que o que é dito, o que está escrito num texto bonito ou em bom português vale mais do que o que está escrito a vermelho nas costas de um envelope, o que está escrito num livro é quase certamente verdadeiro, o que está escrito no jornal é mesmo verdadeiro... Enfim, não vou continuar com estes exemplos.

Mas então como é que se faz para desenvolver o detector de tretas?

Do meu ponto de vista isso consegue-se apenas com método e tempo. Por isso falei atrás em treino, que me parece uma boa analogia. O método poderia dizer que não é mais nem menos que o científico. Isso parece pomposo, mas não é nada! É até bastante simples. Implica ser capaz de aceitar que não se sabe sobre um determinado assunto. Implica ser capaz de conviver bem com a dúvida. Implica ser capaz de rever tudo aquilo que podemos considerar as nossas certezas em função das novas informações que nos vão chegando e de estar disposto a deixá-las cair para aceitar uma outra versão das coisas. Implica ser curioso e querer sempre saber mais. Implica imaginar hipóteses sobre a realidade que nos rodeia. Implica não tentar “demonstrar” ou “provar” essas hipóteses, mas pelo contrário tentar refutar essas hipóteses (assim no estilo “eu acho que isto não parte, mas deixa-me testar... olha! partiu!”).

Como dizia alguém, que eu já não me lembro quem era, ciência é o que qualquer pessoa faz quando come uvas: come uma e avalia a sua doçura, come outra... e logo logo estará a extrapolar que as restantes uvas são todas como as primeiras... mas percebe que há alguma variabilidade nas uvas e de qualquer modo não está certo da sua extrapolação (que podemos chamar indução) e portanto vai provando mais uma e mais outra...

Provavelmente toda a gente que me lê está a pensar neste momento: ah, mas eu faço isso tudo! Eu afinal encaro o conhecimento e a sua aquisição de um ponto de vista científico!... Eu sou um cientista!

Infelizmente, na maior parte dos casos, não é isso que realmente se verifica. O ser humano precisa de colo, de mimo, de afago. E isso, ao nível da nossa mente, significa que todos gostamos de ter as nossas âncoras, as nossas certezas inabaláveis. Gostamos de andar pela nossa cabeça como quem anda numa casa de olhos fechados, sabendo exactamente o que é que lá está.

E é assim que as pessoas escolhem os seus gurus. Quase toda a gente que conheço tem os seus gurus. O que o guru diz ou faz é que é bom, é que é verdadeiro, e por aí vamos... Os gurus são intelectuais de alta roda (normalmente isso implica uma imagem de gente um pouco doida, que se deita muito tarde, que não dispensa uma droga qualquer de vez em quando e que tem outros comportamentos excêntricos), são cantores populares, são políticos, são escritores de livros...

É assim que as pessoas escolhem também as suas religiões. E uma data de outras coisas.

É assim que as pessoas dizem “prefiro nem saber!”. É assim que gostam de ler livros de autores já conhecidos, ver filmes com formatos já dominados, ouvir músicas com batida de quatro por quatro, bateria e guitarra. E é assim que quando os turistas portugueses vão até à Tailândia e a camioneta os deixa no centro da capital para almoçarem onde entenderem, eles logo correm para o primeiro restaurante português que encontram.

Mas para além desta “cientificidade” do método, ele possui um outro aspecto fundamental e que tem a ver com a selecção daquilo que se considera verdadeiro. É aqui, do meu ponto de vista, que a porca verdadeiramente torce o rabo!

A questão é que mais tarde ou mais cedo, no processo de interacção entre a nossa cabecita e o mundo, chega o momento em que temos de optar por aquilo que consideramos verdadeiro, rejeitando o resto. Temos de decidir se continuamos a acreditar que o Passos Coelho é uma pessoa escorreita apesar de termos um tipo à frente que nos tenta fazer acreditar que ele é um energúmeno. Temos de decidir se acreditamos na versão da CNN ou na versão da Al Jazeera da mesma notícia. Temos de decidir se é melhor acreditar no fazedor de opinião que está na moda ou se devemos começar a pensar pela nossa própria cabeça e começar a procurar informação noutras fontes.


A verdade é que, por mais científicos que sejamos, e mesmo para os que se apelidam de cientistas, quando se trata de decidir pela versão A ou pela versão B da mesma realidade, a nossa escolha é sempre uma questão de fé. Sempre. Nem que seja fé nos resultados da experiência super controlada que nós próprios acabámos de realizar.

O busílis da questão é então o de saber como nos haveremos de conduzir nestas tomadas de decisão, por que caminhos e como haveremos nós de conduzir a nossa fé.

Como já disse, há quem conduza a sua fé indo atrás de um guru qualquer e já está!

Se, porém, queremos desenvolver um bom detector de tretas, devemos conduzir a nossa fé por comparação com todo o nosso conhecimento e toda a nossa experiência adquirida. Devemos, conforme já referi, ter uma atitude científica e submeter ao teste mesmo as certezas que consideramos mais inabaláveis. E ir, desse modo, acumulando um conjunto de conhecimentos que podemos considerar “testados”. Cada nova decisão que tenhamos de tomar deverá ser então feita através de comparação com esse conhecimento adquirido.

No entanto, há proposições que são para nós quase impossíveis de testar: por exemplo, como poderemos testar, sem nenhum auxílio mirabolante, a influência que a posição dos planetas tem na nossa vida? Ou como poderemos nós testar se o Passos Coelho é um aldrabão?... As decisões que tomarmos acerca destas hipóteses ficarão acumuladas como conhecimento “não testado”. Não deixa de ser conhecimento. Mas o facto de não podermos testar algumas das coisas em que decidimos acreditar, deve-nos fazer desconfiar um pouco mais delas.

O tempo é então essencial para permitir a confrontação do nosso conhecimento adquirido com as novas realidades que vamos vivendo, para permitir o estabelecimento de ligações entre todos estes dados que estão à partida mais isolados, para permitir, enfim, a constituição de uma rede de referência, um crivo de referência, um detector de tretas, através do qual devermos fazer passar tudo o que nos dão.

Este é um processo que é intimamente pessoal. Ninguém pode criar noutra pessoa um bom detector de tretas. Não é algo que se ensine. Só com vontade própria se chega lá...

Resta então saber se, para cada um de nós, isso valerá a pena.

Infelizmente, do meu ponto de vista, eu sei que há muitíssimas pessoas para quem isso não vale a pena. A questão, como outro alguém dizia, não está no que as pessoas passivamente desconhecem, mas naquilo que activamente não querem conhecer! As drogas, num sentido lato, desde as viagens rápidas às séries televisivas, passando pelos cafés, são demonstrações de como as pessoas preferem mimos a quererem conhecer a por vezes dura realidade dos factos.

So... help us God.