terça-feira, 4 de outubro de 2011

Dos dinheiros bem e mal gastos...

(como as iludências aparudem)


Então vejamos: quando o Estado gasta dinheiro, levanta-se sempre a questão de saber se o está a gastar bem ou mal. Diz-se que o dinheiro é mal gasto se for gasto em carros e motoristas dos políticos e que o dinheiro é bem gasto se for investido em novas e melhores escolas. E isto parece óbvio. E o problema das coisas que parecem óbvias é precisamente que não nos fazem pensar, aliás, quase que nos dizem que se pensarmos acerca disso estamos a cometer uma estupidez.

O dinheiro não desaparece. O dinheiro circula. Imagina uma economia fechada, isto é, sem trocas de pessoas, bens e serviços ou de dinheiro com o estrangeiro (e isto é só para simplificar, porque se quiseres podes sempre imaginar a economia fechada que é a economia mundial, que o raciocínio aplica-se igualmente bem). Pode ser um Portugal imaginário, sem trocas com o exterior. Nesse país há notas e moedas. Assumimos que as notas e moedas não são desfeitas. Portanto, as notas e moedas circulam entre as pessoas.

Nesse contexto, todos os anos o Estado cobra um determinado montante de impostos de uma determinada maneira (pode ser com impostos aos ricos, ou aos pobres, sobre o rendimento, sobre o património, sobre o consumo, tanto faz). E todos os anos o Estado gasta esse montante de impostos, nem mais, nem menos. Nesse caso não há défices (um défice orçamental é a diferença entre o que se tem para gastar e aquilo que efectivamente se gasta, nesse ano, admitindo que se gasta mais do que se tem) e não há dívidas (as dívidas resultam dos défices: para cobrir um défice é preciso um endividamento, dívida essa que pode ser de curto prazo ou de muitos anos, conforme o que for negociado entre o Estado e quem lhe conceder a dívida).

Nesse contexto, o Estado pode optar, por exemplo, entre gastar muito dinheiro em professores e pouco dinheiro em motoristas, ou gastar muito dinheiro em motoristas e pouco dinheiro em professores, ou gastar pouco dinheiro em ambos. E parece que no nosso contexto actual real toda a gente concorda que um Estado que poupa é o melhor Estado que há, mas que se for a gastar é melhor gastar nos professores. Mas porquê?

Na verdade, se o Estado não gastar dinheiro nem em professores nem em motoristas, as notas e moedas ficam em poder do Estado, há menos pessoas a receber dinheiro do Estado, sejam elas professores ou motoristas, essas pessoas terão de gastar menos dinheiro nas suas compras na mercearia e em tudo o mais, e toda a economia se ressentirá negativamente dessa poupança do Estado. Poupar é, portanto, algo que é mau para a economia (e segundo os moldes em que esta economia funciona, que podem ser criticados), e que só faz sentido numa pequena medida, como forma de conseguir um pé-de-meia para tempos mais difíceis.

Ou seja, a poupança do Estado (isto é, a existência de superavits) pode ser benéfica se aplicada em momentos em que a economia está forte e a crescer bem, e apenas na medida em que isso não for muito prejudicial para a economia, e se os fundos que resultarem dessa poupança puderem ser empregues em momentos em que a economia está mais fraca, a crescer pouco ou a decrescer. A este tipo de medidas de política económica que contrariam o ciclo da economia, retirando-lhe dinheiro quando as coisas estão bem e injectando-lhe dinheiro quando estão mal, dá-se o nome de medidas contra-cíclicas.

Portanto, em momentos em que as economias estão em baixo, é bom que o Estado gaste dinheiro. E em boa medida é indiferente que o Estado gaste dinheiro em motoristas ou em professores, desde que essas pessoas que recebem o dinheiro do Estado a seguir utilizem esse mesmo dinheiro para adquirir outras coisas, isto é, desde que o dinheiro se mexa. Neste contexto, gastar mal o dinheiro é sobretudo, e de um ponto de vista de análise macroeconómica, dá-lo a agentes económicos que a seguir o guardam em vez de o gastarem também. E aqui começamos finalmente a tocar na ponta do iceberg do problema. Mas já lá iremos.

Gastar mais dinheiro em motoristas e menos em professores pode ser considerado mau se acharmos que não temos professores suficientes ou que esses professores são mal pagos, por exemplo. Mas isso é algo que é profundamente distinto de considerarmos apenas estas questões de "é bom para a economia" ou "é mau para a economia". Gastar dinheiro é bom para a economia, seja lá em professores ou em motoristas, isso tanto faz. O problema é saber se o que é bom para a economia também é bom para nós. Porque a economia pode continuar a crescer alegremente e as pessoas serem capazes de ter cada vez mais carros e tudo o resto, mesmo tendo cada vez menos escolas. Sim, é possível, perfeitamente possível, apesar de todos os discursos que nos fazem acreditar que maior educação para todos é bom para a economia e logo é bom para nós.

Levanta-se, portanto, a questão de saber o que é que as pessoas querem. Ou seja, para lá de toda a gente querer uma "boa economia", uma economia em crescimento, mesmo sem pararem um segundo para pensarem o que raio será isso, é necessário saber se as pessoas querem de facto mais e melhores professores, mais e melhores escolas.

Imaginemos agora que as pessoas querem, de facto, mais e melhores professores, mais e melhores escolas. Será então necessário saber se as pessoas querem que essas escolas e esses professores sejam pagos pelo Estado ou se preferem alternativamente que sejam pagos por entidades privadas.

Nós vivemos num período em que a ideologia neo-liberal impera. Em geral as pessoas acreditam que as actividades são melhor geridas (com dinheiros mais "bem gastos") pelos privados. É claro que não se lembram que os privados gastam uma pipa de massa em coisas como campos de golfe, tabaco, perfumes, automóveis xpto, etc. As pessoas simplesmente acreditam que os privados fazem melhor que o Estado. Acreditam sem pensar muito no assunto, como é apanágio de qualquer ideologia bem madura. E esquecem-se de muitos problemas relacionados com este assunto, assunto que merecia, sem qualquer dúvida, uma maior ponderação das pessoas.

Esquecem-se, por exemplo, que num período de recessão, os privados despedem mais facilmente as pessoas. Aliás, as pessoas se calhar nem se esquecem, se calhar pensam que assim é que é bom, porque quando as coisas vão mal há que poupar. Esquecem-se, sem dúvida, do que já dissemos ali em cima, que quando a economia está mal é que é mais necessário gastar dinheiro, contra-ciclicamente, e que o Estado tem essa função. De certo modo até poderíamos dizer: ainda bem que o Estado gasta mal o dinheiro, senão as coisas estariam ainda bem piores!

Voltemos ao nosso cenário em que as pessoas querem, de facto, mais e melhores professores e mais e melhores escolas. Imaginemos que as pessoas confiam essa função ao Estado. Será então necessário que o Estado deixe de gastar dinheiro em motoristas para poder gastar dinheiro em professores?

A resposta é negativa. O Estado pode simplesmente arrecadar mais dinheiro, aumentando os impostos. As pessoas também pensam que é mau pagar impostos. Também faz parte da ideologia. Mas, para quem não sabe, e só como curiosidade, isto não é assim em todo o lado. As pessoas pensam que é mau pagar impostos porque ficam com menos dinheiro. O que é importante é perceber, novamente, que o dinheiro não desaparece, o dinheiro circula. Se algumas pessoas ficam com menos dinheiro para pagar impostos, é porque outras pessoas irão ficar com ele (por exemplo os professores) como pagamento por actividades de que os outros poderão beneficiar, e que esse dinheiro que irá parar às mãos de outros pode também ser gasto noutras coisas na economia.

Em períodos de recessão o número de desempregados aumenta. O Estado pode, se as pessoas assim entenderem, gastar dinheiro com os desempregados. Será dinheiro mal gasto? As pessoas pensam que gastar dinheiro com "preguiçosos" é gastar mal o dinheiro. Pelo contrário, o melhor será talvez gastar esse dinheiro com os ricos, porque esses já provaram que sabem utilizar bem o dinheiro. O dinheiro que o desempregado recebe é mal gasto pelo Estado, porque essas pessoas não merecem receber sem se esforçar (porque, já agora, se acredita que as pessoas têm que trabalhar, seja em que condições for, e se não houver trabalhos com condições então terão de trabalhar nos trabalhos que houver) e depois é mal gasto pelo desempregado, por exemplo a comprar vinho. O dinheiro que o empresário rico recebe é bem gasto pelo Estado, porque está a dá-lo a quem se esforçou e teve resultados (a lógica da meritocracia, coisa que também merecia uma ponderação um bocadito maior pelas pessoas) e depois é bem gasto pelo empresário a "gerar riqueza", por exemplo na produção de vinho.

Estas noções de dinheiro bem ou mal gasto não fazem grande sentido e precisam de uma séria ponderação. O desempregado em geral precisa do dinheiro para a sua subsistência. Mal ou bem o desempregado irá gastar muito rapidamente todo o dinheiro que receber, entregando-o a quem lhe vende as coisas que adquire. Mal ou bem o empresário rico irá gastar o dinheiro que receber, quem sabe se apenas uma parte dele, num período de tempo que será certamente mais longo, entregando-o às pinguinhas a quem para ele trabalha (pagar pouco aos trabalhadores pode ter muitos nomes...). Qual destas duas formas de gastar o dinheiro será melhor para a economia, sabendo ainda para mais que o vinho que o empresário vende é o vinho que o desempregado compra?

Vejamos agora o que acontece se num determinado ano o Estado gastar mais do que o que tem. Bom, logo à partida isso só é possível se ele pedir esse algo em excesso a alguém que o empreste. Imaginemos que eu tenho um amigo que gasta todo o salário em álcool e tabaco. Num determinado mês ele excede-se e o dinheiro acaba-se antes de receber o salário seguinte. Ele vem pedir-me dinheiro emprestado. O que é que eu faço? Bom, eu posso fazer muitas coisas:
  • posso recusar emprestar-lhe dinheiro sem mais justificações
  • posso explicar-lhe que sei como ele "gasta mal" o dinheiro e portanto não lho vou emprestar
  • posso recusar-lhe o empréstimo com base no medo que tenho de nunca mais ver o dinheiro
  • posso recusar-lhe o empréstimo, mas aceder a dar-lhe uma ajuda em bens alimentares até ao fim do mês
  • posso emprestar-lhe o dinheiro sem juros e sem garantias
  • posso emprestar-lhe o dinheiro com um juro igual à taxa de inflação
  • etc.
De todas estas coisas eu posso então decidir emprestar-lhe o dinheiro, mas faço-o exigindo uma taxa de juro superior à taxa de inflação, superior àquilo que se espera que o salário dele possa crescer, superior à taxa de retorno que eu teria em qualquer outra aplicação do meu dinheiro, uma taxa de juro que sei à partida que irá custar-lhe caro e que ele dificilmente poderá pagar, de forma a obrigá-lo a pedir-me mais dinheiro no próximo mês. Faço-o com a justificação de que é arriscado emprestar-lhe o dinheiro. Esse mesmo risco também serve de justificação para lhe pedir garantias: fico-lhe com a casa e tudo o mais que houver. No final chamo a este pacote uma "ajuda" e ainda o faço agradecer-me.

O que tem acontecido com os Estados que se endividaram, porque gastaram mais dinheiro do que tinham para gastar, tem sido razoavelmente semelhante. Quem empresta podia fazê-lo de muitas formas, mas calha de o fazer apenas da forma que lhe é mais proveitosa e que é simultaneamente mais ruinosa para os Estados, e ainda lhe põe o nome de ajuda.

Bom, assim seja. Num determinado ano o Estado gastou mais do que o que tinha, por exemplo porque houve uma recessão que o Estado não estava a prever, ou porque a recessão se prolongou mais do que tinha sido previsto, para lá das reservas que o Estado tinha constituído em anos anteriores. O Estado endividou-se junto de algum ou alguns agentes económicos do seu país (lembremo-nos que estamos a considerar uma economia fechada, mas que o raciocínio se pode estender à economia mundial). Esse endividamento criou uma rubrica nova nos gastos do Estado no ano seguinte: qualquer coisa do tipo de "encargos com o serviço da dívida". Ora, esses juros que o Estado pagará pelo empréstimo, serão eles dinheiro bem gasto ou mal gasto?

Também faz parte da ideologia madura dos nossos tempos acreditar que o dinheiro que o Estado gasta com os juros da dívida é dinheiro que é bem gasto, ou pelo menos que não é mal gasto, uma vez que é dinheiro que tem de ser pago, aconteça o que acontecer. Considera-se que é imoral pensar sequer na possibilidade de o Estado não pagar os juros da dívida que lhe são exigidos. Mas não se pensa se a atitude de quem lhe emprestou o dinheiro, uma atitude de entre mil e uma possíveis como ali em cima vimos, é também ilegítima ou imoral.

O certo é que, bem ou mal, o dinheiro é gasto em juros da dívida. O que acontece a esse dinheiro? Desaparece? Não. Esse é dinheiro que é arrecadado através de impostos, tal como todo o dinheiro que o Estado sempre arrecadou ao longo dos anos, só que em vez de ser gasto em professores ou motoristas, é gasto em "emprestadores", a que eu me darei a permissão de chamar agiotas. Novamente toda a questão de saber se o dinheiro é mais bem gasto em professores, motoristas ou agiotas se coloca. Certo certo é que o dinheiro não desaparece e não sai da nossa economia, e se não vai parar aos bolsos de uns, vai parar aos bolsos de outros.

É, estas coisas não são assim tão simples quando se pensa bem nelas.

Mas eu vou fazer um esforço por simplificar as coisas, agora em torno daquilo que é o meu ponto de vista. O dinheiro não desaparece, o dinheiro circula. E na circulação que o dinheiro faz, enquanto o tempo vai correndo, as nossas vidas vão passando. E então o que é que verdadeiramente interessa?

O que interessa verdadeiramente é saber se as pessoas passam a vida a invejar a ostentação e o poder dos outros, se as pessoas têm menos cuidados de saúde porque têm menos dinheiro, se comem pior por causa disso, se promovemos a cultura, o conhecimento, a sensibilidade, a inteligência, a indagação, o espírito crítico e construtivo nas pessoas, se damos condições aos nossos filhos para que tenham vidas melhores que as nossas, se as pessoas têm ou não tempo para usufruirem da sua vida e para a partilharem com os outros, se as pessoas se sentem bem consigo, se se sentem livres, se se sentem independentes e capazes, é a disponibilidade para amar, é o não ter medo do dia que aí vem e da conta da electricidade e do frigorífico vazio, são os desastres nas estradas e o ar que respiramos... O que conta é a felicidade das pessoas, de todas as pessoas.

E não se pense que isto são coisas vagas. Muito concretamente, da forma como o dinheiro circula nos dias que correm, resultam duas coisas que considero muito más e nas quais gostaria que as pessoas pensassem mais:
  • o dinheiro concentra-se cada vez mais
  • o presente e o futuro dos que têm menos está cada vez mais comprometido
O pagamento de juros a agiotas, as compras que fazemos cada vez mais aos mesmos (aos "sítios do costume"), a criação de economias paralelas mas lá em cima, inatingíveis por comuns mortais (conforme têm comprovado nos últimos anos as vendas de artigos de luxo), o crescente desemprego, o desinvestimento em tudo o que é público (e não falo apenas das escolas e dos hospitais, mas também dos jardins, das bibliotecas, das ruas, dos parques naturais, das rádios e televisões, do sistema jurídico, das repartições de finanças, etc.), tudo isso são sintomas do mesmo. E tudo isto cada vez mais acompanhado dos discursos da excelência e do mérito, como se isso fossem conceitos universais no tempo e no espaço e se alguma vez pudessem ser justamente exigidos ou sequer aplicáveis a toda a gente.



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