quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Achas que devo fazer uma greve geral?...

(imagem extraída da capa do livro "Teoria Geral da Estupidez Humana" de Vítor Rodrigues)


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Não sei se deves fazer isto ou aquilo. Uma greve geral é um meio arriscado, pois que te expões à justa acusação de que deixas a tua mulher e os teus. filhos a morrer de fome. Não é a greve que irá provar o teu senso de responsabilidade perante os males da tua sociedade. Quando entras em greve não trabalhas. Um dia virá em que, em vez de fazeres greves, saberás TRABALHAR deveras em nome da vida. Chama-lhe então greve de trabalho, se tens apego à palavra “greve”. Mas greve trabalhando para ti, para os teus filhos, para a tua mulher ou a tua rapariga, para a tua sociedade, a tua produção ou as tuas terras. Vai dizer-lhes que não te sobra tempo para as guerras deles, que tens, mais que fazer. Muralha cada cidade desta convicção e deixa então que diplomatas e marechais se matem uns aos outros, pessoalmente. Tais seriam as coisas a ser feitas, se não mais berrasses “Viva” e não mais te afirmasses como sendo ninguém, ou alguém sem direito a opinião própria. Tens tudo nas mãos, a tua vida e a dos teus filhos, o teu machado e o teu estetoscópio. Vejo-te abanar a cabeça, pensar que sou um utopista ou talvez mesmo um “comunista”. Perguntas-me se poderei dizer-te quando saberás viver a tua vida em paz e segurança; a resposta consiste no inverso da tua forma de ser atual: viverás bem e em paz quando a vida significar para ti mais do que a segurança; o amor mais do que o dinheiro; a tua liberdade mais do que as linhas diretivas do partido ou a opinião pública; quando o modo de estar no mundo de um Beethoven ou de um Bach for o tom habitual de toda a tua existência (e já o é, Zé Ninguém, abafado pelo rumor da tua existência menor); quando a tua forma de pensar estiver de acordo, e não, como hoje, em discordância, com a tua forma de sentir; quando te for possível reconhecer os teus dotes a tempo e reconhecer a tempo o teu declínio, a tua velhice; quando te for possível viver o pensamento dos grandes homens em lugar dos crimes dos ditos grandes guerreiros, quando os professores dos teus filhos forem mais bem pagos do que os políticos; quando tiveres maior respeito pelo amor entre um homem e uma mulher do que por um certificado de casamento; quando puderes reconhecer os teus erros refletindo a tempo, e não demasiado tarde, como o fazes hoje; quando sentires que o teu espírito se engrandece conhecendo a verdade e as formalidades te inspirarem horror; quando comunicares diretamente com os teus camaradas de trabalho, não mais tendo diplomatas por intermediários; -quando: a alegria que a tua filha adolescente possa encontrar no amor for também a tua alegria, e não motivo da tua cólera; quando souberes abanar apenas a cabeça nas mesmas circunstâncias em que outrora se castigavam as crianças por tocarem nos seus órgãos sexuais; quando finalmente a face humana do homem da rua puder expressar a alegria, a liberdade e a comunicação, não mais a tristeza e a miséria; quando os seres humanos não mais povoarem a terra com as suas ancas retraídas e rígidas e os seus órgãos sexuais enregelados. Pedes orientação e conselho, Zé Ninguém. Quantas vozes, boas e más, se ergueram, pelos séculos, em resposta... Não é porque delas careças que permaneces na desgraça; é a tua própria mesquinhez que te condena. Também eu poderia aconselhar-te, mas sendo como és e pensam o como pensas não serias capaz de pôr em seção o que quer que te fosse aconselhado no interesse de todos.

Imaginemos que eu te aconselhava a fazeres desaparecer toda a atividade diplomática e a substituí-la, pela fraternidade profissional e pessoal com todos os sapateiros, carpinteiros, mecânicos, técnicos, físicos, educadores, escritores, administradores, mineiros e camponeses de todos os países; que fossem, pois, todos os sapateiros do mundo os responsáveis pela decisão de qual o melhor modo de calçar todas as crianças chinesas; os mineiros responsáveis pelas reservas de carvão para aquecimento de todos os países frios; os educadores de todo o mundo volvidos guardiões da futura sanidade mental de todas as crianças recém-nascidas. Que farias tu, Zé Ninguém, sé te visses a braços com todos estes simples problemas da existência quotidiana?

Decerto que a tua resposta, ou a de qualquer dos representantes do teu partido, governo ou sindicato, (a menos que me prendesses imediatamente como “comunista”), seria a seguinte:

“Quem sou eu para poder substituir as relações diplomáticas por relações internacionais ao nível do trabalho e do desenvolvimento social?”

Ou: “A eliminação das diferenças nacionais no domínio do desenvolvimento econômico e da cultura não é possível”.

Ou: “Queres que se restabeleçam relações de qualquer espécie com os fascistas alemães, ou japoneses, ou com os comunistas russos, ou com os capitalistas americanos?”

Ou: “Acima de tudo interessam-me os destinos da minha Pátria – Rússia, Alemanha, América, Inglaterra, Israel ou Comunidade Árabe”.

Ou: “Já me chegam os problemas que tenho para manter a minha vida em ordem e para me entender com o meu Sindicato dos Alfaiates. Outros que se ralem com os sindicatos de outros países”.

Ou: “Não dêem ouvidos a este capitalista, bolchevista, fascista, trotskista, internacionalista, sexualista, judeu, estrangeiro, intelectual, mitómano, utopista, demagogo, doido, individualista, anarquista. Onde está a vossa consciência de americano, russo, alemão, inglês, judeu?”

Podes ter a certeza absoluta de que usarias qualquer destes slogans, ou outros, a fim de evitar a tua responsabilidade na forma como se processam as relações entre os homens.

“Mas, então, eu não sou nada? Parece que não me reconheces um único traço positivo! Afinal, que diabo, trabalho que me farto, sustento a minha mulher e os meus filhos, levo uma vida decente e sirvo o meu país. Não posso ser tão estupor quanto isso!”

Sei que és uma criatura capaz, sólida, com qualidades de trabalho, tal como uma abelha ou uma formiga. Tudo o que tentei foi pôr-te à mostra o que tens de medíocre e te destrói a vida há já milhares de anos. És GRANDE, Zé Ninguém, quando não és medíocre e mesquinho. A tua grandeza é a única esperança que nos resta a todos. És grande quando desempenhas com gosto a tua tarefa quando trabalhas na alegria a madeira, quando constróis, quando pintas e embelezas os teus espaços, quando trabalhas a terra, quando contemplas o céu na quietude e te comprazes na existência dos animais simples, no orvalho, quando danças e cantas, quando amas a beleza dos teus filhos, o corpo do homem ou da mulher que escolheste; quando vais até um planetário tentar entender o espaço ou a uma biblioteca ler o que pensaram da vida outros homens e mulheres. És grande na tua velhice, com o teu neto no colo, dizendo-lhe de como foi outrora, respondendo à sua curiosidade confiante. És grande quando és mãe, embalando o teu filho nos braços, o coração cheio de esperança de que para ele venham melhores dias, a felicidade que, hora a hora, lhe vais construindo.

És grande, Zé Ninguém, quando cantas as antigas canções do teu povo ou danças ao som do acordeão, porque os cantos do povo são pacíficos, e são-no em todos os lugares do mundo. E és grande quando afirmas ao teu amigo:

“Ainda bem que o destino me concedeu até hoje uma vida limpa e sem ambições, que pude acompanhar o crescimento dos meus filhos, ouvir-lhes as primeiras palavras, vê-los mover-se, andar, brincar, fazer perguntas, assistir à sua, alegria; ainda bem que não deixei passar a Primavera sem a sentir, que pude gozar o vento ameno e o rumorejar dos regatos e o canto das aves; que não perdi o meu tempo em mexericos com os vizinhos, que amei a minha companheira e que senti correr no meu corpo o fluxo da vida; ainda bem que, mesmo em tempo de perturbação, não perdi o norte nem o sentido da vida. Pois que me foi possível escutar a voz que murmurava no meu intimo: ‘Existe apenas uma única coisa que vale a pena: viver bem e alegremente a própria vida. Escuta a voz do teu coração, ainda que tenhas de afastar-te do caminho trilhado pelos timoratos. E não consintas que o sofrimento te torne duro e amargo.’ E assim, na quietude do cair da tarde, quando me sento na erva em frente de minha casa, depois de um dia de trabalho, com a minha mulher é os meus filhos, ouço no pulsar da natureza à minha volta a melodia do futuro: ‘Humanidade inteira, eu te abençôo e abraço.’ E desejaria então que a vida aprendesse a defender os seus direitos, que fosse possível modificar os espíritos duros e os medrosos, que só fazem troar os canhões porque a vida os desapontou. E quando o meu - filho instalado no meu colo me pergunta: ‘Pai, o sol desapareceu, para onde foi, achas que volta depressa?’, respondo-lhe: ‘Sim, filho, há-de voltar amanhã para nos aquecer.’”

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Excerto de "Escuta, Zé Ninguém!" de Wilhelm Reich.
Retirado da versão integral brasileira disponível aqui.
Também editado em Portugal pela Dom Quixote.

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